sexta-feira, 16 de maio de 2014

ATESTADO DE IDENTIDADE - AIRTON MONTE



               Que tudo fosse mais fácil na vida da gente quisera eu, quando em vez, só pra variar. Coisas como o fazer, o gozar, o sofrer, o desejar. Sonhos pequenos não me bastam, porque me apequenam. Chega demover meu desejo apenas no limite estreito do possível.
              Nem sempre o mundo é uma coisa e eu outra. No entanto, faço questão de permanecer uno e, em certas situações que só a mim dizem respeito, indevassável dentro de mim mesmo, apesar das bandeiras das linguagens do corpo, inclusive o discurso.
               Súbito, me aparecem asas e voo, de preferencia sobre abismos. Há em mim a fascinante vertigem dos precipícios. Dirão de mim, e pouco me importa, que não passo de um hiperbólico visionário ou um onirómano sem remissão. E daí? Sou eu quem pago o preço.
               Pouco me interessam esses desertores da fantasia, que só acreditam no toma lá da cá, de todo dia. Homens ocos que se assustam com seu próprio eco.
               Careço de algo mais que o prosaico feijão-com-arroz cotidiano, de viver encarcerado entre o relógio de ponto e o pijama de listras. Não me satisfazem apenas casa, comida, roupa lavada, familia, trabalho, dinheiro no banco.
                Quero algo além disso que não se¡ bem o que seja. Felicidade será? Essa entidade definida como paz de espírito? Significará a domesticação dos sentidos? Se for isso, tô fora,meu chapa.
               Meu caminho não se orienta para deuses nem demônios. Minha bússola sou eu, que me guio, me perco, me acho descendo aos meus infernos ou ascendendo aos meus paraísos, embora artificiais.
               Sou chuva e sou planta, trigo e moinho, faca e flor, aquele que age e o que observa. Assim me divido e colo meus pedaços feito espelho e imagem.
               Estar e ser, eis a questão. Estou e sou, cada vez mais louco, mais lúcido, apenas isso. Digo e repito, até acreditar que eu sou eu sem qualquer dúvida e pronto. Manjo disso.
50.01.2002
 MOÇA com FLOR NA BOCA _ CRÔNICAS ESCOLHIDAS

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